Um dia histórico no Ruanda, o primeiro Mundial de ciclismo em África num dos percursos mais duros de sempre e num país que adora o ciclismo como poucos. Será Tadej Pogacar capaz de vingar a derrota sofrida no contra-relógio ou teremos novo show de Evenepoel?

 

Percurso

Um dos Campeonatos do Mundo mais duros da história, pelo menos com mais desnível acumulado, passa mesmo dos 6000 metros. são 16 as passagens pela meta num circuito com cerca de 15 quilómetros onde pontificam 2 subidas principais, o Cote de Kigali Golf (800 metros a 7%) e o Cote de Kimihurura (1300 metros a 6,2%) onde boa parte na subida é em paralelo e os primeiros 500 metros têm 8,8%. Esta colina é coincidente com a meta. A meio da corrida os ciclistas fazem um desvio para passarem por 2 pontos míticos desta zona, o Mont Kigali (5,9 kms a 6,5%), a ascensão mais longa e dura da prova com os 900 metros finais a 11,5% e o Mur de Kigali, 300 metros a 13,7% numa rua empedrada em muito mau estado. O Mont Kigali está a 104 kms da meta e quando voltarem para o circuito irá faltar cerca de 90 kms.

Tácticas

Não há propriamente um termo de comparação para esta corrida, estamos a saltar num território desconhecido porque em 2025 e na história recente dos Campeonatos do Mundo não houve nenhuma corrida com esta dureza (6000 metros de acumulado) e ainda por cima em circuito. Diria que o mais parecido que iremos ter é a corrida dos sub-23 que a Bélgica, inexplicavelmente, tentou controlar e dominar com apenas 5 elementos. Amanhã haverá blocos maiores e um maior sentido táctico visto que a corrida feminina foi surpreendente devido à constituição do pódio, à marcação das favoritas e ainda algumas tácticas questionáveis.



Tinha falado que a preparação de Pogacar para o contra-relógio não tinha sido a melhor e isso comprovou-se, é uma disciplina que requer muito trabalho específico e uma grande simbiose entre ciclista e “cabra”, a dúvida que paira no ar é se o esloveno não estará a acusar o desgaste de uma longa época, eu creio que não depois do que vimos no Canadá. Acho que Pogacar vai estar melhor do que no início da semana e também acho que Evenepoel não pode embandeirar em arco, tem de continuar a ter noção dos seus limites. Também acredito que este percurso com sobe e desce constante é bom para as características do belga, viu-se como na Amstel e na Liege ele tem bons resultados na sucessão de subidas explosivos, ao contrário da Fleche, que é um esforço mais em solitário.

O que irá acontecer? Creio que a Eslovénia vai assumir a corrida desde cedo, usando Primozic e Zumer, se for necessário até Govekar e Mezgec. Gal Glivar é uma pequena incógnita e julgo que no meio disto tudo os ciclistas mais importantes vão ser Domen Novak e Matej Mohoric, isto para manter a situação controlada para um possível ataque de Tadej Pogacar, visto que Roglic pode ser usado para marcar os adversários e atrapalhar perseguições se necessário. A questão é onde Pogacar pensa tentar fazer diferenças, a subida mais dura do traçado, o Mont Kigali, está a 104 kms da meta, pode ser longe demais até para um astro como Pogacar. Reduzir aí o grupo para 10/20 corredores e ter a inferioridade numérica pode ser um pesadelo e começar a receber ataques como a Visma tenta fazer quando corre contra o esloveno.

O cenário ideal seria Pogacar atacar aí e ter companhia para uma aventura duradoura, estou a ver ciclista como Evenepoel, del Toro e Alaphilippe a darem relevos e a trabalhar com Pogacar. Mas é uma linha muito ténue entre ter a combinação perfeita e ficar em desvantagem, por exemplo, se 2 ou 3 belgas ou 2 ou 3 australianos estiverem nesse grupo e Roglic não estiver aí Pogacar pode estar em problemas, daí que eu ache que há a possibilidade de o ataque não surgir no Mont Kigali, se isso não acontecer obviamente as outras selecções vão começar a atacar e a arriscar com opções secundárias e aí depende da capacidade de perseguição da Eslovénia. Vimos como nestes Mundiais só a corrida sub-23 fez diferenças mesmo grande, porque foi endurecida desde início, nesse campo estou curioso para ver a atitude de Austrália, França, Reino Unido e Bélgica.



Favoritos

Tadej Pogacar – Obviamente que a fraca exibição no contra-relógio é um motivo para preocupação, por um lado esperava mais dele porque sentia que era uma boa oportunidade para finalmente ganhar esse título, por outro lado a viagem ao Canadá não ajudou e o pouco tempo passado em cima da “cabra” também, o mais alarmante não foi perder para Evenepoel, foi perder mais de 1 minuto para Vine e ser batido por van Wilder. Um Pogacar a 95% é capaz de vencer esta corrida, resta saber como estará e tendo em conta o que se passou acho que vai ser conservador e não vai meter tudo em cima da mesa no Mont Kigali, até porque pode ficar numa posição fragilizada.

Isaac del Toro – Acho que o mexicano é um dos grandes candidatos, não seria a primeira vez que depois de uma primeira Grande Volta a lutar pela geral esse levar o corpo ao limite apresenta grandes ganhos no futuro e Del Toro dominou por completo as clássicas italianas, que foram uma boa preparação para este momento. O 5º lugar no contra-relógio é encorajador numa especialidade que não é a dele e sendo colega de Pogacar pode beneficiar da ajuda do esloveno em determinados momentos para garantir um título para a UAE.

 

Outsiders

Remco Evenepoel – Não retiro assim tantas conclusões da exibição avassaladora do belga no dia do contra-relógio, é o melhor do Mundo nessa especialidade tão particular. Tem um histórico surreal em provas deste género, duplo campeão olímpico, 4 vezes campeão do Mundo, 3 em contra-relógio e 1 na estrada, só tenho as minhas dúvidas porque quando há mais táctica à mistura sinto que lhe falta qualquer coisa. O seja, ou é claramente o mais forte ou quando há equilíbrio de forças é demasiado solidário a puxar no grupo .Estou com curiosidade para o ver porque numa corrida com esta extensão e competindo pouco nos últimos meses pode faltar-lhe competição.

Thomas Pidcock – Tive as minhas dúvidas ao longo de toda a Vuelta, mas tenho de dar a mão à palmatória, Pidcock mostrou uma resiliência, capacidade física e conhecimento do próprio corpo que surpreendeu imenso, isso são características importantes para um circuito desgastante mentalmente e fisicamente como este. É um especialista na sucessão de esforços curtos e explosivos, terá é de conseguir sempre uma boa colocação.

Richard Carapaz – Muita atenção, ciclista dos grandes momentos que desde o Tour tem preparado com afinco este dia, vai tentar repetir a graça dos Jogos Olímpicos, quando foi campeão de uma forma inesperada numa corrida muito aberta. Pode não ter outra chance como esta devido ao traçado e ao contexto e o facto da corrida se disputar sempre em altitude é bom para o equatoriano.



Possíveis surpresas

Ben Healy – Corredor muito perigoso e que creio terá total apoio dos seus colegas, nomeadamente Rafferty e Dunbar. Tem um motor incrível, está a preparar este dia há semanas e considero um sério candidato às medalhas, ainda que não o esteja a ver a ganhar. Healy já foi 3º e 4º na Liege, 10º nos Jogos Olímpicos e 7º nos Mundiais, vai estar na luta.

Jai Hindley – Um dos ciclistas que tenta trazer o bom momento da Vuelta para Kigali, é preciso dizer que o australiano nunca foi bom em clássicas, das 9 vitórias que tem na carreira nenhuma foi em clássicas, dos 8 Monumentos que fez nunca conseguiu sequer um top 20, no entanto se há Mundial bom para as suas características é este.

Jan Christen – 4º no escalão sub-23 em 2024, é um ciclista que deu um grande passo em frente este ano, considero-o um especialista em corridas de 1 dia, tem uma atitude confiante e autoritária, por vezes ainda ingénua e mais de metade das vitórias que tem na carreira foram em clássicas, para além do 2º lugar em San Sebastian atrás de Ciccone.

Julian Alaphilippe – Campeão do Mundo em 2020 e 2021 será sempre um corredor inconfundível e que vai fazer de tudo para ser protagonista mesmo que depois rebente. Teve uma grande vitória no Quebec, um triunfo mais da astúcia táctica do que da capacidade física e isso viu-se em Montreal. Acho que se for uma prova dura e rápida desde início não terá hipóteses, se for táctico terá as suas chances.

Oscar Onley – Um corredor que no papel tem aqui um percurso que gosta, mas não tem parecido em grande forma. Foi 16º em 2024 e acho que se encaixa bem aqui pelo desnível e pela explosão que tem quando necessário. O Reino Unido pode jogar bem com estas cartas.

Giulio Ciccone – Foi uma Vuelta de altos e baixos para Ciccone e o consenso internacional é de que quem fez a Vuelta estará ligeiramente em desvantagem aqui porque não estagiou em altitude. Começou a Volta a Espanha com grandes expectativas, depois quebrou e voltou a aparecer bem no último dia de montanha. Este ano ganhou a Clássica San Sebastian e foi 2º na Liege-Bastogne-Liege, diria que são as 2 clássicas mais comparáveis a isto pela extensão e desnível. É a melhor aposta da Itália.



Mattias Skjelmose – Impressionou ao ganhar na Volta ao Luxemburgo numa chegada parecida com a última colina do circuito, a subir e em empedrado. Tirando a Amstel Gold Race é um ciclista que levanta muitas expectativas até pelas suas declarações à imprensa e depois até não consegue responder na estrada, veja-se os seus resultados numa clássicas bem mais dura como a Liege-Bastogne-Liege. Foi 10º em 2022 e não acabou em 2024.

Quinn Simmons – O capitão América foi 3º em Montreal, o primeiro dos comuns mortais depois do domínio completo da UAE e será o líder da equipa norte-americana face à ausência de Brandon McNulty. Talvez haja dureza a mais para ele, tenho dúvidas sobre a sua capacidade se o Mont Kigali for muito atacado porque de resto as outras colinas estão ao seu alcance.

Jay Vine – Vencedor de 2 etapas e da classificação da montanha na Vuelta, medalhado de prata no contra-relógio, terá de ser um nome a ter em conta pelo momento de forma e confiança em que está. Levanta mais desconfiança pelo facto de não ter qualquer bom resultado numa prova desta extensão e numa grande clássica.

Juan Ayuso – Não tenho grande esperanças, nem ele nem nesta equipa espanhola onde talvez Soler seja aquele que obtenha o melhor resultado. Ayuso não é ciclista para este tipo de esforços, não está a 100% e não é corredor de clássicas.

Paul Seixas – 19 aninhos, mas muita qualidade e talento nas pernas, vencedor da Volta a França do Futuro que gosta desta dureza, vamos ver como se dá num traçado tão longo.

 

Super-Jokers

Os nossos Super-Jokers são: Afonso Eulálio e Toms Skujins.

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